QUANDO TUDO ACONTECEU…
1493 (?): Nascimento de João Ramalho, em Vouzela, distrito de Viseu. – 1512 (?): Sua viagem para o Brasil. – 1514 (?): É aceito pela tribo tupiniquim chefiada pelo cacique Tibiriçá, o qual lhe dá como esposa a sua filha Potira. – 1532: Ajuda Martim Afonso de Sousa a fundar a vila de São Vicente (no litoral do atual Estado de São Paulo). – 1553: Funda e é nomeado Alcaide-mor da vila de Santo André da Borda do Campo, no planalto de Piratininga. – 1554: Ajuda o jesuíta Padre Manuel da Nóbrega a levantar a povoação de São Paulo de Piratininga. – 1560: Mem de Sá, Governador-geral do Brasil, extingue a vila de Santo André e promove São Paulo a vila. – 1562: João Ramalho, com a ajuda de Tibiriçá, comanda a defesa de São Paulo contra o ataque da chamada “confederação dos tamoios”. – 1564: Recusa o cargo de vereador da vila de São Paulo e retira-se para o vale do Paraíba. – 1580: Morre João Ramalho em São Paulo.
CONFISSÃO
Vossa Reverendíssima insiste ouvir-me em confissão? Compreendo e agradeço o cuidado. Já fiz 87 anos, amanhã vou apagar-me e quereis que eu vá sem mácula à presença do Criador. Porém, nesta passagem, mais temo por vós do que por mim. Explico-me e perdoai-me o doesto: sois muito verde, noviço recém chegado. Sem prévia vivência das terras do Brasil, não conseguireis entender os volteios da minha vida. Ireis ficar escandalizado como escandalizado ficou em tempos o Padre Manuel da Nóbrega, o fundador desta vila de S. Paulo. Chegou mesmo a pregar que petra scandali era toda a minha vida. Mais tarde corrigiu a opinião, mas que o disse, lá isso disse, e quase me excomungou.
Não, Padre, Ramalho é a minha alcunha por causa da minha barba que foi sempre ramalhuda. Maldonado é que é o apelido do meu pai. Nome de cristão novo, achais que sim? Antes de vós, já outros disseram o mesmo e até disseram que a rubrica ou gatafunho com que assino os documentos é um kaf, letra hebraica. Portanto, para eles, marrano fugido ou degredado para o Brasil serei eu. Outros opinam que eu sou apenas um náufrago que deu à costa. Nada disso eu desminto ou confirmo. Padre: mais vale cair no mar fundo do que rolar nas bocas do mundo… Contra correntes adversas, não vale a pena resistir-lhes. Não se perca o fôlego, é deixar que nos arrastem. Só quando começam a enlanguescer é que, num repelão, delas podemos nos safar. E eu safei-me, como estais vendo, pois venho aqui a morrer de velho. Padre, foi por entre duas águas que atravessei a vida.
A ILHA DO PARAÍSO
Em Vouzela, onde nasci, despeço-me de Catarina, a minha esposa, e parto para Lisboa. O motivo? Padre: essa é matéria que não vem ao caso. Pecados, se os cometi, foi aqui e não em Portugal, e pecados é o que eu devo confessar. Abalo de Vouzela, coração apertadinho… Suponho, e bem, que nunca mais tornarei a ver a Catarina, pois o meu destino é o Brasil tão distante. Mas, ao chegar a Lisboa, logo me animo. Não só por causa das novas da expedição de Fernando Noronha que, esse sim! veramente cristão-novo e mercador, o que não obstou que el-Rei D. Manuel, o Venturoso, lhe tivesse arrendado as terras de Vera Cruz desde 1502 a 1505 para o abate e recolha de pau-brasil, então muito procurado para a tingidura de panos. E foram 20 mil quintais que renderam 5 por 1. Pensei que o nome do pau-brasil lhe viesse da cor de brasa, mas um marinheiro bretão, com quem fiz amizade, conta-me que na sua terra, e na sua língua, corre a antiga lenda que O’brazil é o nome verdadeiro da Ilha do Paraíso, e que tinham sido os afortunados portugueses a descobri-la, e por isso está ele em Lisboa na esperança de poder ser engajado numa viagem ao Paraíso.
Arribo a esta costa do Brasil em 1511, talvez em 12, ou 13, não sei ao certo, com tantos anos em cima do lombo a memória já me vai falhando. Bem acolhido sou por António Rodrigues, o degredado português a quem todos chamam, ou chamavam, o “bacharel de Cananéia”, e que há muito tempo vive entre os índios tupiniquins da beira da praia. Apadrinha-me e logo me parece que demandei veramente o Paraíso pois, ao acolherem-me, os índios começam por me dar mulher nova, escorreita e muito limpa, e eu estou na casa dos 20 anos, deslumbramento…
NUDEZ E MALÍCIA
É o que eu temia: Vossa Reverendíssima já começa a benzer-se e a apostrofar-me por ter caído eu em pecado mortal, que é o da fornicação e luxúria. Segui o ditado em Roma sê romano e confesso que, entre os índios, índio fui. Para eles, pecado é recusar o que a natureza prazerosa manda colher. Vossa Reverendíssima escandaliza-se com a nudez das mulheres nativas e desvia os olhos para não mirar aquilo a que chama suas vergonhas. Mas se malícia existe não será nelas, pois com inocência revelam os corpos que Deus lhes deu, tal como vós mostrais a nudez das vossas mãos. E mais vos digo que assim desnudas são elas mais discretas e modestas do que as ataviadas damas do Paço e nem sequer estou a compará-las com as marafonas que, vestidas da cabeça aos pés, andam em requebros pelas ruas de Lisboa. Quanto ao relacionamento que estas índias têm com os homens, procedem elas com a mesma naturalidade e prazer com que se refrescam e matam a sede com a água de coco.
Uma coisa de comum têm as nativas com as reinóis: a vaidade. Mas enquanto as de lá gastam os dias a escolher tecidos, brocados e roupas com que pensam adornar-se, estas daqui passam o tempo a fazer cocares com penas de aves e a fantasiar desenhos e motivos com que irão pintar os corpos umas das outras. São elas também que pintam, com mão firme, a geometria que se espalha sobre os corpos de rapazes e guerreiros. Tintas preparadas com barro, resinas e sumos de frutas. Portanto pinturas que duram apenas até ao próximo banho. Porque estes índios são muito asseados, chegam a tomar um, dois, ou mesmo três banhos por dia. São muito diferentes dos portugueses, que fedem como os porcos que trouxeram do Reino.
POTIRA E TIBIRIÇÁ
Vinda do planalto de Piratininga, um dia baixou à praia Potira, cujo nome quer dizer flor. Não sei por que os portugueses insistem em chamá-la de Bartira, já que o seu nome verdadeiro é Potira… Índia jovem, quase uma menina, esbelta, verdadeira flor de manacá. Boto os olhos nela e quedo logo embeiçado. Afaga-me as barbas, ri-se do meu enleamento e vai-se embora. Resolvo segui-la. Por veredas que descubro ou invento por entre o mato grosso da encosta íngreme, trepo pela serra de Paranapiacaba acima. Aquela a que ides chamando Serra do Mar. Potira é filha de Tibiriçá, cacique de Inhapuambuçu, a principal taba ou aldeamento dos campos de Piratininga. Também o cacique parece gostar de mim. Espanta-se com a minha barba ramalhuda e diverte-se com a minha forma de falar a sua língua. Adopta-me e dá-me Potira em casamento. Antes de construir a minha oca, ficamos provisoriamente a viver na maloca, ou palhoça colectiva, do meu sogro. Promiscuidade? Saiba Vossa Reverendíssima que homem nascido numa maloca não pode casar ou ter conjunção carnal com mulher nascida na mesma maloca e todos aceitam voluntariamente esta lei. Portanto, promiscuidade não é, mas outra forma de vida muito diferente daquela a que os portugueses estão acostumados.
Na maloca de Tibiriçá vivem, entre homens, mulheres e crianças, umas duzentas pessoas. Está dividida em várias secções, em vários lares, e em cada lar um homem com as suas mulheres e os seus filhos. Entre os moradores da maloca não há segredos e o que pertence a um pertence a todos. E o mesmo altruísmo estende-se aos moradores das seis malocas vizinhas, e aos dos outros aldeamentos mais à frente porque, por casamentos cruzados das mulheres de um grupo, ou maloca, ou taba, com homens de outro grupo, de outra maloca, de outra taba, todos eles são parentes, e assim toda as tribos de uma mesma nação que ocupa um território por vezes maior do que o de Portugal, vivem em amizade e harmonia.
Sim, Padre, confesso que mulheres tive e tenho muitas, pois todos os caciques queriam e querem ser meus parentes. Mas a esposa principal é Potira. Respeitada pelas demais, na minha maloca a sua rede fica sempre armada junto à minha. De Potira e das outras tenho muitos filhos e filhas. Os meus meninos mestiços… Ou caribocas, como dizem os índios; ou mamelucos, como dizem os portugueses; mas esta é palavra árabe que perdeu o rumo, porque significa pajem, escravo ou criado e os meus filhos nunca foram nem meus pajens, nem meus escravos, nem meus criados, embora outros caribocas, que não os meus, tenham sido tudo isso para outrem que não eu. Os meus caribocas andam por aí desde as praias de S. Vicente, Bertioga e Itanhaen até aos campos de Piratininga, a dar-me força e prestígio pois casaram e tiveram filhos e netos que, por sua vez, também se casaram, e por isso me tornaram parente de quase todos os tupiniquins. De mim alguém disse (e não mentiu) que, se necessário, num só dia eu poderia reunir à minha volta 50 mil homens. E reuni, não foram precisos tantos mas uma vez eu reuni largos milhares e por isso o Padre Manuel da Nóbrega até me ficou muito agradecido. O caso aconteceu lá pelos idos de 1562, depois eu conto.
Se tudo isto é pecado, então, Padre, eu pecador me confesso. Mas bater no peito eu cá não bato, nem faço acto de contrição. Não podeis, por isso, absolver-me, nem dar-me a extrema unção? Sossegai pois, na Sua omnisciência, saberá Deus Nosso Senhor entender e perdoar os volteios da minha vida… Padre, o que fiz nesta vida, nesta vida eu não renego. E na outra, a ver vamos…
FUNDAÇÃO DE SÃO VICENTE
Padre: em 1532, tenho eu uns 40 anos, ouço a nova que várias canoas grandes (assim os índios chamam às naus) com homens brancos a bordo, tinham fundeado junto à praia. E que António Rodrigues, o “bacharel de Cananéia”, em vão tentava interpor-se entre índios e brancos, guerra à vista. Com os meus homens desço a serra, chego à praia. Comanda a expedição Martim Afonso de Sousa, a quem el-Rei D. João III concedera donataria com cem milhas de costa e todas as terras que houvesse dentro, limitadas a norte e a sul por duas paralelas ao Equador.
Se, por um lado, eu sou respeitado chefe tupiniquim, por outro português continuo ainda a ser. A nadar assim por entre duas águas, só a paz poderá sossegar o meu tormento e trato de promovê-la. Em tupi discurso para os índios e em português para os lusos. Digo-lhes que os brancos ocupem o litoral, mas que deixem os índios continuar nas suas fainas de pesca. Que uns não molestem os outros. Que iniciem o escambo do que uns têm a mais e outros a menos, e todos alcançarão seus proveitos. E assim se faz. Martim Afonso de Sousa e os seus dão 6 anzóis e 2 cunhas por 80 patos, e 2 cunhas grandes mais 20 punções e 4 tesouras por 2 antas, e 5 cunhas mais 5 anzóis por 5 cargas de milho, e 100 facas por 200 rolas, e 15 cunhas mais 15 anzóis médios por 15 veados, e 40 cunhas mais 12 tesouras e 52 anzóis por 52 cabaças de mel em favo, e 2 tesouras mais 25 punções e 24 anzóis por 26 cargas de ostras. Portugueses e tupiniquins ficam todos muito contentes com o escambo, pois os brancos estão muito carenciados de mantimentos e, para os índios, ferramentas de ferro é algo de milagroso.
Mais se firma a paz e a boa amizade quando eu facilito mulheres para os portugueses solteiros e as cunhantãs até quedam muito felizes com o arranjo pois num repente melhoram de vida. Padre: podeis excomungar-me mas atentai que alcoviteiro não fui eu, porém apaziguador de vendavais.
Com António Rodrigues e os meus filhos caribocas e muitos outros tupiniquins, ajudo os portugueses de Martim Afonso de Sousa a construir casario de pedra e cal, também a igreja matriz e assim rompe a vila de São Vicente.
ESCRAVIDÃO
Então, nos campos em redor de São Vicente, os portugueses começam a plantar cana de açúcar e a levantar engenhos e pedem-me que lhes forneça escravos para os trabalhos da lavoura. Os tupiniquins não sabem o que isso seja, mas sei eu. Nas guerras que mantínhamos com os tamoios e outros tapuias, fazíamos muitos prisioneiros. E então ponho-me a pensar que mais vantajoso será vendê-los aos portugueses do que comê-los, costume que veramente me dá a volta ao estômago e à alma. Tento conciliar o inconciliável e assim ajudo a abrir as portas do inferno em que hoje vivem todos os índios, os tapuias mas também os meus tupis, porque os portugueses, a partir do momento em que passam e ter índios como escravos, e não querendo distinguir tupis de tapuias, acham que todos os índios devem ser escravos seus… Padre, por ora não estou a falar de vós nem dos outros missionários jesuítas, mas daqueles portugueses que vêm do Reino ao Brasil com a ambição de fazer fortuna rápida e logo tornar à pátria. Deles também se queixa o Padre Manuel da Nóbrega. Um dia ouço que se lamenta, embora aos solavancos, pois tartamudo é ele:
– De quantos vieram lá do Reino, nenhum tem amor a esta terra. Todos querem fazer em seu proveito, ainda que seja à custa da terra, porque esperam de se ir. Não querem bem à terra, pois têm a sua afeição em Portugal; nem trabalham tanto para a favorecer, como para se aproveitarem de qualquer maneira que puderem.
Mas doutra ouço que assopra aos missionários:
– Se el-Rei quer ver os índios todos convertidos, pois deve mandar sujeitá-los. Deve haver um protector dos índios para os fazer castigar, para não deixá-los comer carne humana, nem guerrear sem licença do Governador, fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se pois têm muito algodão, fazê-lo viver quietos sem se mudarem para outra parte.
E eu já não sei, Padre, já não sei qual é a pior sujeição: se a física ou a mental.
COMEDORES DE CARNE HUMANA
Sim, Padre, confesso que, embora a contra gosto, também eu fui um comedor de carne humana, em Roma sê romano. Não fique Vossa Reverendíssima horrorizado que eu sei de horrores maiores cometidos lá no Reino. Quando, numa guerra, os tupiniquins aprisionam um tapuia, não tratam mal o prisioneiro, até antes pelo contrário. Dão-lhe de comer e beber, tudo quanto queira. Chegam mesmo a dar-lhe mulher que em tudo o serve. E quando amanhece o dia marcado para o sacrifício, empunhando o tacape, que é um pilão de guerra, o carrasco aproxima-se da vítima e diz-lhe:
– Sim, vou matar-te, pois a tua gente também matou e comeu muitos dos meus.
Se o tapuia não tremer, não desfalecer de medo, se for homem de coragem, responderá:
– Depois que eu for morto, os meus irão vingar-me, tu vais ver.
Então o carrasco, com o tacape, acerta-lhe uma pancada na nuca e assim é morto o prisioneiro. Só depois começam a assar-lhe o corpo. E se ele foi homem de coragem, mais disputada é a sua carne, porque todos pensam partilhar assim de tal coragem.
Padre, não me comove a vossa repugnância pois eu sei que no Reino agora a voga é, em nome de Deus, prender judeus e cristãos-novos, é torturá-los até lhes partirem os ossinhos todos, é levá-los ainda em vida à fogueira, o que é grande maldade que não se usa por aqui. Assam-nos em vida e depois nem sequer os comem, desperdício.
SANTO ANDRÉ DA BORDA DO CAMPO
Padre: em 1553, aproximadamente 20 anos depois de Martim Afonso de Sousa se ter ido embora, e estava eu com mais ou menos 60 anos, o seu primo Tomé de Sousa fundeia as suas naus ao largo de São Vicente. Mas vem como Governador-geral do Brasil, porque el-Rei tinha acabado com as donatarias, pois das 15 só 2 tinham resultado: a de São Vicente, por esforço meu, e a da Bahia por esforço de um Diogo Álvares Correia, a quem os tupinambás, com os quais vivia, chamavam Caramuru.
Junto com Tomé de Sousa vinha o jesuíta Padre Manuel da Nóbrega, com a missão de evangelizar os tupiniquins. Antipatiza logo comigo e quase me excomunga, já vos disse. Mas, em abono da verdade, devo acrescentar que, anos depois, para me safar de pecado mortal, tentará casar-me com Potira. Aviso-o que tenho mulher legítima no Reino. Escreve para Vouzela a saber novas de Catarina, se ainda é viva ou já finada. Não vem resposta. Na dúvida, manda que eu acabe com a mancebia. Recuso, repudiar Potira eu cá não repudio. Para escândalo do Padre decido continuar a viver em pecado mortal…
Este Tomé de Sousa é homem decidido. Para evitar incursões dos corsários franceses que infestam as costas do Brasil, manda construir um forte na barra de Bertioga. E para congregar os colonos que andavam esparsos pelo litoral ao sul de São Vicente, manda edificar a vila de Conceição de Itanhaen. Depois, para sustar o comércio dos moradores de São Vicente com os castelhanos de Assunção do Paraguai, na serra de Paranapiacaba cega as veredas de acesso ao planalto e decide construir, lá no alto, uma vila cuja guarnição impeça a passagem dos mercadores num e noutro sentido. A medida revolta a população de São Vicente que tem os seus interesses em tal comércio, mas foi pensado assim e assim se faz. E, contra a opinião do Padre Manuel da Nóbrega, sou eu o indicado para, lá na boca do sertão de Piratininga, fundar a vila de Santo André da Borda do Campo. Também sou o seu primeiro e único Alcaide-mor, pois a vila será extinta em 1560 pelo novo Governador-geral Mem de Sá.
SÃO PAULO DE PIRATININGA
Saiba Vossa Reverendíssima que, apesar da má vontade do Padre Manuel da Nóbrega, em 1554 ajudo-o a fundar São Paulo de Piratininga, povoação que Tomé de Sousa mandara levantar. Sempre esta minha mania de nadar por entre duas águas, conciliação… Santo André e São Paulo, duas povoações tão próximas uma da outra, mas porquê? Um capitão, que é muito meu amigo, pois muito lhe facilitei a vida junto dos tupiniquins, comete inconfidência e mostra-me o Regimento de D. João III para Tomé de Sousa. As instruções são claras:
“Será grande inconveniente os gentios, que se tornaram cristãos, morarem na povoação dos outros e andarem misturados com eles; e será muito serviço de Deus e meu apartarem-nos da sua conversação. Encomendo-vos e mando que, os que forem cristãos, morem junto, perto das povoações das ditas capitanias, para que conversem com os cristãos e não com os gentios, e possam ser doutrinados e ensinados nas coisas da Santa Fé; e aos meninos, porque neles imprimiram melhor a doutrina, trabalhareis por dar ordem como se façam cristãos e que sejam ensinados e tirados da conversação dos gentios.”
Tomé de Sousa não pensava povoar o planalto. São Paulo, com o seu Colégio, e com o seu Padre Anchieta que tão bem aprendeu a falar tupi que até nessa língua faz hinos e poemas, era apenas um aldeamento para a evangelização dos índios.
Já Mem de Sá, terceiro Governador-geral do Brasil, é um pau de dois bicos. Começa por proibir escravizar os índios. Mas, ao mesmo tempo, manda desimpedir as veredas de Paranapiacaba e em 1560 extingue a Santo André dos meus guerreiros tupininquins (e de escassos peões portugueses) e promove São Paulo a vila. É um nebuloso convite aos aventureiros, porém convite: subam ao planalto a caçar índios! E eles começam a subir, ó se começam… E são perigosos, devastadores, pois os portugueses facilmente se adaptam a tudo: se não há farinha de trigo pois coma-se a de mandioca, se não há uvas pois comam-se jabuticabas, se não há bagaço de vinho pois beba-se aguardente de milho, se não há colchões pois durma-se em rede, se não há putas brancas pois fodam-se índias! Desleixados, sem planos prévios levam tudo a eito, dispostos apenas ao trabalho de pôr os outros a trabalhar para eles, sequiosos que estão de honrarias e riquezas…
Atormentado, rolado entre duas águas, com os meus tupiniquins abandono a extinta vila de Santo André e retiro-me para o sertão.
A “CONFEDERÇÃO” DOS TAMOIOS
Tantas atrocidades são cometidas que bastam apenas dois anos para unir todas as tribos dos tamoios, desde Bertioga ao Cabo Frio, e até mesmo ao vale do Paraíba… E eis uma nação de índios congregada para arrasar São Paulo, com todos os seu moradores, homens de armas, padres, artesãos, mercadores e senhores de engenho, o povo todo… Em desespero de causa o Padre Manuel da Nóbrega manda-me pedido de socorro. Atendo, é a pecha do costume, as duas águas… Com Tibiriçá, o meu sogro, em dois dias reuno milhares de homens. Em 1562 há lutas, escaramuças, guerras e morticínios, mas os tamoios não conseguem entrar em São Paulo. Sou eu quem comanda toda a defesa. Assim o querem os portugueses, assim o faço.
Depois os Padres Manuel da Nóbrega e Anchieta entram a parlamentar com os tamoios. Dão razão às suas queixas e prometem-lhes que os brancos não mais irão prear índios porque eles, Padres, são contra a escravização. Os tamoios acreditam que assim vai ser. Em 1563, em Iperoig, os Padres e os tapuias fazem a paz. Coitados de tapuias e tupis…
MEDITAÇÃO
Em 1564 oferecem-me o cargo de vereador de São Paulo. Recuso e, com os meus homens, retiro-me para o vale do Paraíba. Por lá fiquei até hoje, já lá vão 16 anos. Tive muito tempo para meditar sobre as duas águas em que andei e ando sempre a rolar.
Padre: o índio segue a natureza, o português luta contra ela. Quando, por causa das queimadas, se esgotam as suas terras, o índio abandona-as, procura e desbrava outras e tantas há que parecem não ter fim… Constrói uma nova taba ou aldeamento, reconhece o novo território de caça. Para apanhar pacas, capivaras, tamanduás, coatis e outros bichos, coloca as armadilhas nos trilhos novos. Nos rios que descobriu observa a que pegões vão os lambaris e outros peixes em cada época do ano. O índio está sempre a mudar de lugar, para ele não tem sentido a casa de pedra e cal. Também não tem sentido a acumulação de víveres, pois o calor apodrece-os. Conhecendo a natureza como conhece, em cada momento dela vai retirando o que precisa. Já a ambição do português, habituado à penúria dos seus Invernos, é acumular, de tudo, o mais que possa, em tempo curto, cereais e frutos secos, conservas em azeite, ou fumeiros, ou salgadeiras de carnes e peixes. Nem os índios conseguem entender os portugueses (aos quais chamam de loucos), nem os portugueses conseguem entender os índios (aos quais chamam de selvagens). Padre: olvidei estas diferenças, quis conciliar o inconciliável e o resultado é o que se vê.
Reparai agora que todas as tribos de fala tupi, que ocupam a faixa litorânea desde o norte do Brasil até ao rio da Prata, por causa dos casamentos cruzados e alargados, são todas elas aparentadas. Só mais para o interior é que vivem e reinam as outras tribos ou nações tapuias, que são dezenas, se acaso centenas não forem elas. Até parece que Deus Nosso Senhor, ao espalhar os tupis pela costa do Brasil, quis preparar a entrada dos portugueses, pois a estes bastou-lhes aprender apenas mais uma língua, para se fazerem entender de norte a sul em tamanho território.
Vossa Reverendíssima não torça o nariz porque, embora os portugueses sejam os novos donos do Brasil, aqui a língua portuguesa é como o latim, lá no Reino, só poucos a falam. Aqui, a língua-geral é o tupi, embora corrompido pela língua portuguesa, porém tupi ainda. E até a língua portuguesa que algumas criancinhas aprendem no Colégio (não nas ocas ou malocas) vai sendo corrompida pelo tupi. Vossa Reverendíssima, em Coimbra, falava um português impecável. Aqui já vai dizendo urubu em vez de abutre, mirim em vez de pequeno, saúva em vez de formiga, capim em vez de forragem, jabuti em vez de cágado, arapuca em vez de armadilha, catapora em vez de bexigas, jararaca em vez de cobra, e tantas mais…
E eu pergunto-me se as facilidades que os povos de língua tupi deram aos portugueses, estão a ser devidamente retribuídas pela forma como estes tratam aqueles. Não, Padre, não estou a falar apenas da sujeição física, mas também daquela outra que promoveis com a evangelização dos índios, esse vosso trabalho de sapa das suas antigas crenças e tradições, afinal suas referências para a vida ter sentido e apetecer. Estou a falar dos muitos milhares de índios que, em consequência, vão perdendo a vontade de viver e de resistir à opressão dos brancos. Bem sei que anjos, não homens, é o que vós, jesuítas, pretendíeis fabricar nos vossos aldeamentos. Mas vejo que não haveis conseguido nem uma coisa nem outra, apenas mortos-vivos.
Padre: estou velho e prestes a apagar-me. Português nasci e só ambiciono, na hora da morte, ouvir falar a minha língua natal. Só por isso tornei a esta vila de São Paulo, é ainda esta minha pecha das duas águas…
Padre: se tudo o que digo vos parecer blasfémia, pois relevai as patetices de um velho senil que a vós chega amparado pelos seus caribocas, e tratai de encomendar-me a alma a Nosso Senhor, deus dos brancos, que um pajé, antes do meu retorno, já a encomendou a Tupã, deus dos índios.
FERNANDO CORREIA DA SILVA
Escritor português (1931 – 2014)